*Texto escrito originalmente em 20 de abril de 2020.
Sentada ao computador eu olho a vista. Sim, tenho uma bela vista, com colinas, casinhas, o trilho do trem, e ouço galos cantarem. Parece até mentira que estou a 5 min a pé da estação da cidade e a 10 min do centro. Parece uma paisagem descrita nos livros onde a personagem principal é também uma autora e escreve vendo pela janela as colinas e o trilho do trem.
Olho aquele post it amarelo que me chama dizendo que tenho que fazer o imposto de renda e pagar o condomínio. Contraste brusco com minha paisagem bucólica. Sei que tenho aulas pra preparar, videoaulas para gravar, curso online para fazer e tantas, mas tantas outras obrigações absolutamente prementes, entre elas colocar o feijão pra cozinhar.
Ainda assim me perco no voo das andorinhas, a cabeça apoiada na mão, a mão apoiada na mesa. E sinto como se fosse quase impossível me mexer, como se estivesse travada naquele momento. A primavera que vejo da janela é a mais linda que vimos nos últimos 20 anos, talvez 50 anos, embora aí eu já não possa atestar, ou até mais.
Coloco as mãos no abdômen, que já começa a reclamar de estar nessa posição, ligeiramente inclinado para frente. Se agora já me incomoda, como será daqui alguns meses? Olho pro voo das andorinhas e me pergunto, que tipo de loucura estou fazendo. Que mundo é esse que meu filho ou filha conhecerá? Será que trarei vida ao mundo bem no momento de um cenário apocalíptico, com doença, mortes, máscaras, medo e solidão?
Ou será que conseguiremos, enquanto humanidade, sociedade, nos reinventar, e coexistir com a mais bela primavera dos últimos tempos? Será que meu descendente crescerá num mundo mais solidário, onde as pessoas partilham mais, se preocupam mais com os entes queridos, e com os desconhecidos também? Será que aprenderemos que as pessoas sem casa precisam de casa, que o preço das casas precisa ser mais baixo e justo, que todos precisam de renda, com ou sem emprego, que é isso que faz nosso mundo girar? Será que teremos mais feiras onde os produtores vendem seus alimentos a preços justos e recebem o valor direto em mãos? Será que os pais e mães terão o direito de continuar a trabalhar mais horas de casa, ainda que não todas, e as crianças terão menos atividades extra curriculares, e mais tempo em família, tal qual os educadores tanto tentam ensinar nesses dias obscuros? Será que os educadores e enfermeiros serão valorizados e receberão tanto quanto médicos e engenheiros, agora que na calamidade vimos que não só não podemos existir sem eles, mas que o trabalho deles é duro e essencial?
Essas dúvidas existenciais, e práticas, me consomem. Mas também me consomem pensamentos muito mais banais e nem por isso menos essenciais, como se conseguiremos vender e comprar outra casa antes do bebê nascer, maior e num local com uma praça ou parquinho. Se as lojas estarão abertas para que eu compre pelo menos os móveis mais básicos, roupinhas e fraldas. Se continuaremos tendo emprego e forma de pagar por tudo isso. Isso sem nem contabilizar na lista de pensamentos a parte do parto, hospital e saúde, em plena pandemia.
Por isso me perdoo por estar travada, olhando o voo das andorinhas. Sei que o feijão não pode esperar muito mais, e nem o imposto, nem o condomínio. Mas tudo parece tão banal quando somos confrontados com os verdadeiros valores da existência.
Quando perdi meus pais e meus avós, temas recorrentes dos meus textos, eu passei muito tempo sem me abalar por nenhum problema pequeno. Todos pareciam ínfimos perto da certeza do fim da vida. Nem mesmo um acidente de carro grave parecia tão sério. Tinha muita certeza da vida, do essencial, e embora um pouco apática, estava inabalável.
Dessa vez sinto esse mesmo distanciamento quando incorpóreo em relação as pequenezas da vida. Nada parece ser urgente o suficiente. Mas dessa vez não me sinto desconectada e indiferente ao resultado, como antes. Antes era só eu. Só mais uma vida. Agora não. Agora somos plural. E eu preciso vencer o voo da andorinha, e fazer o feijão, e o imposto, e pagar o condomínio. E dar um jeito de gravar tudo, e trabalhar ainda mais do que antes. E preparar a casa. E manter a mente consciente e presente. E ainda por cima preciso manter a calma, a saúde e a paciência.
Quando diziam que mãe tem que dar conta de tudo, eu ainda não tinha entendido o tamanho de tudo. Eu sempre dei conta de tudo. E sempre fui muito boa nisso. Mas o tudo do mundo de um, é muito diferente. Agora não somos dois, enquanto casal, ou três enquanto família, somos o mundo todo de um outro alguém. E se essa responsabilidade já pesa em qualquer ombro, em qualquer momento, pesa ainda mais agora.
Eu sei que de um jeito ou de outro vou dar conta. Por que sempre dei. Por que fui feita assim. Já elicitamos todos os possíveis cenários, dos mais incríveis aos mais calamitosos, já fizemos planos A, B, C e até Z para todos os casos.
E sei que nenhum deles vai ser a realidade.
E pensamos na família, do outro lado do oceano, e o coração dói por eles, de medo, de saudade. E pensamos na família que vem, e o coração enche de luz e amor. E também os ombros pesam de responsabilidade.
Vem em paz e em luz, meu bebê. Você será sempre recebido com o melhor que pudermos te dar. Eu só espero, torço, desejo, e faço muito, para que esse melhor seja bom o suficiente. E é por isso, que eu destravei. Escrevi isso correndo, que é pra nunca mais esquecer, nunca mais travar. E vou só salvar e correr para pôr o feijão no fogo, e fazer toda a burocracia, e as aulas e o trabalho. Por mim, por você, por nós.
A vida nos trará inúmeras surpresas, mas saiba que desde o dia que te descobri, você virou prioridade. É um fato inevitável, mas forte que a vontade, mais forte que a racionalidade. Talvez isso seja o tal amor incondicional de mãe.